Dois Relatos Selvagens

Por Inácio Araujo

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1.

É Relatos Selvagens mesmo, o filme argentino.

Relutei em assistir, porque há muita unanimidade em torno dele.

Mas fui e me diverti muito.

É um filme de pequenas e agudas histórias, que na maior parte das vezes dão conta da enorme tensão social que existe na Argentina.

Mas isso não impede, nunca, que vejamos na frente de tudo os seres que descreve.

Claro, há situações de caricatura. A história na estrada (enfrentamento entre dois carros, o do rico e o do pobre) parece quase um desenho animado, pela ironia, pela crueldade implicada e também pelo humor.

Me lembrou um pouco “A Guera dos Roses”, em que a racionalidade vai para o beleléu na hora da briga.

Mas há outros: o inicial é muito interessante, e aquele aeroporto meio vazio já cria um clima impressionante.

O esquete final, do casamento, me pareceu o mais desenvolvido, o mais complexo deles todos.

Um filme bem levado, bem interpretado e com um artesanato forte.

Também uma forte percepção da atualidade de seu país. Lembra o que, para nós, foi “Tropa de Elite”.

E por aí já dá para ver a distância entre os dois cinemas.

2.

Selvagem, de fato, é o relato de “Retratos de Identificação”, de Anita Leandro.

Eu vi o filme numa Sessão dos Direitos Humanos, que tem no Espaço Frei Caneca.

A diretora é professora de cinema na UFRJ e fez um trabalho primoroso de historiadora.

Levantou a história de três guerrilheiros presos no mesmo instante em São Paulo: Antonio Spinosa, Chael Charles Schreier e Maria Auxiliadora, dita Dora.

Graças à liberação de certos arquivos policiais, Leandro conseguiu levantar exatamente o histórico de tortura a que foram submetidos os três.
Era uma época de tortura pouco científica. Os caras batiam, horrivelmente, mas não tinham o cuidado de evitar marcas (mais tarde usariam métodos que não deixavam marcas).

Pelas fotos, registros e, no caso de Chael, laudo de autópsia, é perfeitamente possível demonstrar não apenas as circunstâncias de sua tortura como de sua morte, de seu assassinato, pode-se dizer.

Os depoimentos são apenas dois, mas detidos, profundos: de Spinoza e de Reinaldo Guarany: são os dois maridos de Dora, Maria Auxiliadora Lara Barcelos.

O essencial é que não se trata de um filme de denúncia, no sentido tradicional. Mesmo o lado investigativo é apenas uma parte da coisa.

Sua eficácia vem das virtudes narrativas. A diretora faz de Dora o eixo da narrativa. Ela é que está lá, do princípio ao final (trágico final, diga-se) e faz a unidade do filme.

Ou seja, leva a transitar da primeira guerrilha ao momento mais dramático, o da saída de 70 guerrilheiros após um sequestro, do exílio no Chile, o golpe no Chile, a fuga (dos que puderam fugir) e, no caso de Guarany e Dora, o exílio na Alemanha, na condição de apátridas, sem passaporte, sem direito a sair de Berlim.

Um momento forte do documentário.