“Getúlio Vargas” preenche tudo o que se pode desejar do cinema de “qualidade brasileira”:
- o conjunto maquiagem, luz e câmera sabe como fazer a imagem dos atores imitar a de seus personagens, em particular Getúlio e Carlos Lacerda;
- a direção de atores funciona bem e seria difícil pedir mais do que Tony Ramos fez, pois se tratava de reconstruir uma personagem com gestos e maneiras bem conhecidos; tratava-se de flertar com a caricatura, sem nunca entregar-se a ela
- o roteiro segue um bom princípio biográfico , que é centrar-se em um momento determinado, que concentre as qualidades da personagem histórica;
- no mais, o roteiro se estabelece como um “thriller”, que anda e prende a atenção;
- o grande mérito da direção me parece ser o flerte com a cama do presidente: exploram-se bem suas andanças nessa câmara que é bem mais presente do que o gabinete presidencial.
De certa forma temos aí uma história íntima do presidente. História pessoal ou familiar, já que Alzira, sua filha, tem um peso enorme como interlocutora e o roteiro sabe explorar as relações entre ambos de tal forma que ela não se torne apenas um eco do pai.
No entanto, essa história pessoal, do que efetivamente ela dá conta?
O preço que se paga pela “qualidade” é alto. A política é omitida. Que interesses estavam em jogo naquele momento? Eis algo que não interessa ao filme. A tecla é a da corrupção contra a integridade: era a questão da imprensa naquele momento, pode-se argumentar. A questão que levou Getúlio à morte.
Ok, mas nesse caso o momento da vida de Getúlio, aquela grave crise política explorada moralmente talvez não fosse o melhor, o mais capaz de revelar suas grandezas e contradições.
A abjeção
Essa opção pela história íntima acima de tudo determina, ao fim, um desses momentos embaraçosos.
A morte do presidente. Podia-se fazer o tiro por trás da porta, ouvido por Alzira, por exemplo.
Podia-se insinuar o gesto, também.
Mas João Jardim optou pela exposição completa da intimidade de Vargas.
Não bastava aquele plano absurdo, dos pés no chinelo, mostrando as marcas de secura (e velhice) no calcanhar.
Era preciso três planos: de frente, apontando o revólver para o lugar que o filho havia designado como o do coração; de costas, recebendo o tiro; e, pior, plano frontal com Vargas caindo.
De envergonhar, para resumir meu sentimento: como violar correspondência.
Recomenda-se leitura urgente do artigo de Jacques Rivette (sobre a abjeção, no travelling de “Kapo”) e o repique de Serge Daney sobre o mesmo tema: a morali9dade (já que de moralidade trata, afinal, o filme).
Os textos são encontráveis na internet, tradução de Ruy Gardnier, salvo erro na Cinética. Em todo caso, dando um Google é possível achar.
Em todo caso, acho que o filme não se esgota por aí.
Vale ver, claro. E planejo voltar a ele.
João Carlos
Reajo à da morte de João Carlos Sampaio com atraso proporcional ao estupor e à revolta que me causaram a notícia.
Eu o conheci João Carlos Sampaio apenas superficialmente. Ele vinha a São Paulo de vez em quando, nos festivais. Era uma pessoa sempre muito simpática, sorridente, acolhedora e viva.
Não aguento mais saber de pessoas bacanas morrendo. Agora é quase todo fim de semana…
Vamos ver se isso melhora.