A Vitalidade Francesa

Por Inácio Araujo
cena do filme A Odisséia de Alice
cena do filme A Odisséia de Alice

Só sei do que acontece hoje na França por vias indiretas, mas minha impressão mais recente era de um país cuja cultura me parecia esgotada. Mais nenhum Céline, nenhum Artaud, nenhum Lacan, nenhum Lévi-Strauss. Nenhum desses caras que poderíamos, pudemos chamar de mestres foi substituído com o mesmo vigor. Me parece, ao menos, e tirando aqui e ali algum caso isolado.

O cinema chegou mais perto, com a Nouvelle Vague e seus arredores. Mas deles todos o único ainda vivo é Godard. Quem veio no lugar? Eu só vi força análoga em coisas do Olivier Assayas.

Mas a França funciona melhor, em todo caso, quando em bloco: movimentos, manifestos, polêmicas etc. Nada disso acontece há muito tempo.

Mas em poucas semanas pintaram dois filmes que me deixaram tremendamente animado. Não mobilizam aquelas grandes paixões de outros tempos porque hoje o mercado é ocupado, basicamente, pelos blockbusters e cada vez menos o Brasil acredita que o cinema seja uma arte.

Sobre O Valor de um Homem , que devemos a Stéphane Brizé, acho que já falei aqui. É um filme de abordagem direta, como se pretendesse tirar do caminho qualquer obstáculo entre o personagem e o espectador. Certas cenas (o constrangimento de pessoas que roubam supermercados e são apanhadas, por exemplo, ou o momento em que o protagonista, desempregado, tenta vender a casa) são exemplares e memoráveis justamente por isso.

Já “A Odisseia de Alice”, de Lucie Borleteau, segue estratégia exatamente oposta. É como se buscasse botar todos os obstáculos do mundo entre nós e a protagonista. Não que isso seja encher o filme de penduricalhos, longe disso, trata-se de nos aproximar lentamente, de forma estudada, do assunto.

Ali temos Alice, uma engenheira (se bem entendi) naval, trabalhando em um navio que a toda hora precisa de reparos. Minha primeira lembrança: o “Manpower” (Aquela Mulher) de Raoul Walsh, em que os caras ficavam recuperando linhas de eletricidade.

O Fidelio, navio onde ela trabalha, me lembrou “Anáguas a Bordo”. Também está mais para sucata do que outra coisa. Mas é preciso, entre explosões de caldeira, vazamentos e tudo mais tocar em frente.

O aspecto trabalho no mar é levado hawksianamente, ou seja, a sério. Mas o aspecto principal é outro: o desejo.

Desde o início nos perguntamos: como é que vai ser essa história, uma mulher no meio de uma tripulação masculina?

Bem, como é que vai ficar eu não conto, mas conto o seguinte: o centro do filme é o desejo. O caráter do desejo é caótico, ao mesmo tempo ele não pode ser negado.

Eis o que nos leva ao outro aspecto do filme: Alice é uma mulher da água, não da terra firme. Ela navega, e a água é instável.

Borleteau pinta, em seu primeiro filme, como uma diretora notável. A vitalidade de Alice é a mesma de seu filme.