Cultura sublevada

Por Inácio Araujo
Foto: Valery Hache/AFP
Foto: Valery Hache/AFP

A cultura é uma coisa estranha. Durante 13 anos de um governo supostamente de esquerda (ou mais de esquerda) ela permaneceu lateral, burocrática, desimportante.

Não digo que isso fosse apenas por conta dos agentes culturais. Tenho a impressão de que o público também (ou sobretudo) estava num estado de acomodação quase doente: vota que o governo arranja as coisas etc.

Pois bastou um gesto do governo provisório Temer, a extinção do MinC, para que isso se transformasse inteiramente.

De repente, a cultura pesa. Adquire um peso que já ninguém imaginava que existisse. E minha impressão é de que a extinção do MinC é o menos importante de tudo.

De repente, a cultura pesa. A equipe de “Aquarius” faz uma manifestação na porta do cinema em Cannes.

Descobrimos que um filme faz um barulho impressionante.

Logo que houve o impeachment, ou golpe, ou que nome seja, a primeira coisa que pensei foi: vai ser bom para o cinema.

As pessoas voltarão a procurar o cinema, os filmes, os teatros como lugar de encontro, de troca, de busca.

Isso acontecia lá por volta de 1980.Fosse o filme bom ou ruim.

Nos últimos tempos, a indiferença é geral, parece que as pessoas estavam hipnotizadas. Frequentavam musicais. Os filmes bons simplesmente não são vistos. Vale para livros etc.

De repente, volta de novo à vida, ao interior das coisas, que é o único lugar em que pode existir (sublevada ou não).

A cultura de fato não tem sentido se acomodada. Pode estar certa ou errada, mais rica ou menos.

O barulho que “Aquarius” fez em Cannes, como filme, e na Europa, como barulho, mostra uma cultura viva como eu já tinha esquecido que podia ser, que é, que só pode ser.

Desculpe quem acha o contrário, mas estava na cara que um impeachment do jeito que foi articulado, pedido e executado só podia dar em besteira.

Não penso nem nas besteiras imediatas, que parecem um tanto calamitosas, e sim em pensar que impeachment é uma festança, não um traumatismo.

Bem, resumindo: a cultura existe, está viva, mostra o seu sentido, que não é necessariamente combater governos, mas é estar entre as coisas, integrá-las, suscitá-las.

Até agora, os secundaristas eram a vanguarda, o lugar de invenção (e, admitamos, parte dos humoristas). Agora a cultura se integrou a eles e abandonou a paradoxal alienação dos tempos petistas (digo: a cultura – não os artistas, a cultura).