Apichatpong parece cada vez mais à vontade ao transitar entre o mundo dos vivos e o dos mortos, os fantasmas e os sonâmbulos, o passado e o presente, os deuses e os mortais. Em “O Cemitério do Esplendor” há de tudo, e tudo muito estranho.
Começando por aquele hospital que ocupa o lugar de uma antiga escola, e onde os pacientes são soldados que não fazem senão dormir. Uma senhora (com uma das pernas bem mais longa que a outra) adotará um soldado. Também fará amizade com uma médium. É ela, acho que é, quem dirá que os soldados dormindo estão, na verdade, combatendo as batalhas dos antigos imperadores.
Esses imperadores, por sinal, estão enterrados ali embaixo.
Pode ser, pois tudo é muito, muito cheio de mistério. Como a visita que a senhora manca recebe depois que faz uma oferenda num altar. A visita de duas deusas, que lhe veem agradecer pela beleza do que foi oferecido naquele altar.
Bem, eu falei acima das várias instâncias pelas quais Apichatpong circula à vontade. Esqueci de uma, fundamental: entre o sonho e a realidade.
Porque é difícil distinguir quando estamos num sonho, quando na vida real. Ou mesmo, aliás, se existe diferença entre ambos.
Vejamos outra das melhores cenas do filme: a senhora e seu adotado vão ao cinema. Vemos uma espécie de trailer de um filme aparentemente chinês, cheio de ação e terror. O filme acaba e toda a plateia levanta e permanece imóvel, como que tomada por seres estranhos, como em A Cidade dos Amaldiçoados. Hipnotizados, sonambulizados: cinematizados, talvez?
Quer dizer: anulados de si mesmos pelo cinema (convencional, claro), alienados.
Outro momento magnífico: no refeitório, um soldado comenta com outro a boa qualidade da comida. No segundo seguinte, cai dormindo em cima do prato mesmo.
As quedas no sono são frequentes, aliás.
Claro, muito do sentido do filme nos escapa, menos pelos costumes e religião tailandeses do que por desconhecer as circunstâncias desse país.
Outra sequência impressionante: a médium (é mesmo ela?) passeia com a mulher pelo terreno. E descreve em minúcias um suntuoso palácio naquele lugar que parece abrigar ruínas. Em que registro estamos? Na mediunidade, no sonho, abismo de um sonho?
De todo modo, me pareceu o filme mais politizado, de longe, de Apichtapong. Não me parece que seja por acaso que vez por outra aparece a foto imponente de um militar. O país é governado por militares… Em estado de ditadura mesmo.
De certa forma parece ter herdado as guerras de seus vizinhos (Laos, Camboja, Myamar, que é antiga Birmânia), que não são poucas.
Um filme para rever, muito forte, muito talentoso e não raro divertido.
A política e seus palavrões
Não é por não tentar que não consigo escrever alguma coisa sobre a situação política: a cada instante surge uma coisa nova.
Meu palpite é que ou prendem o Lula, sem nada estar demonstrado contra ele, ou o governo Dilma cai. Ou ambos.
Será o triunfo do golpe?
Todos dirão que não etc.
Eu acho que sim: quem foi eleito tem de ficar até o fim.
A Dilma é chata, é verdade, mas isso não é motivo para depor uma presidente.
As acusações contra ela, tipo pedaladas fiscais, são patéticas.
Daquelas contra Lula eu já dei minha opinião: numa caçada vale tudo, toda bala é bala. Se o cara levou uma multa de trânsito está passível de prisão.
Eu não sou jurista, não entendo nada desse papo de data vênia, vossa excelência e tudo mais.
Eu só repito o que diz o Céline: “a Opinião Pública tem sempre razão… Ainda mais se for bem cretina…”
Fala que eu te escuto
Era o sintomático nome de um programa da Record logo que foi comprada pelos pastores.
Dito isso, o episódio das escutas me pareceu lamentável, não tanto pelo que há lá (sou ingênuo, admito, não vi nada de mais no que se falava), mas pelo que o William Bonner, o bom rapaz do jornal, extraiu daquilo.
E o que foi? Ah, ele ficou escandalizado com os palavrões… Acho que foi sincero. Ele é tão bom menino, nunca deve ter dito nenhum. Ele é bonito, é educado e asseado: pode entrar na casa de qualquer família.
Se a família for bem hipócrita, melhor ainda.
Em resumo: sou mais Céline. Muitos milhares de vezes.
O que nos estão servindo é uma ficção ordinária, vagabunda mesmo, boa para ser engolida por um país que engole novela todo dia há uns 50 anos. É isso que somos.
De diferente: haja o que houver, lembra Xico Sá no El Pais, essa guerra continuará. Ele diz que é rua do Ouvidor contra o sertão do beato. É o prolongamento de Canudos. São duas forças que não se reconhecem. Mas existem. Devaste uma delas, ela ressurgirá.
É como nos filmes de Apichatpong, mais ou menos: são muitas vidas para viver.
Não é tão diferente, em todo caso.
A guerra civil
E de toda essa história, ao menos restará a boa piada que me contaram:
Cuidado, irmãos, para não começar uma guerra civil. Quem pintará nossa Guernica não vai ser o Picasso, vai ser o Romero Brito.