O Homem e o Cavalo

Por Inácio Araujo

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“O Cavalo de Turim” começa com a narrativa da história de um homem cujo cavalo se recusava a andar; esse homem, muito nervoso, agride o cavalo e puxa o chicote para obrigá-lo a continuar puxando sua carroça. É quando Nietzsche intervém, avança sobre o homem e lhe tira o chicote das mãos. O que ocorre em seguida é o principal: o homem recolhe-se à sua casa e durante dez anos, se bem me lembro, não trabalha, não fala, não nada: vive cuidado pelas mulheres da casa. A única frase que pronuncia nesse período é: eu sou um imbecil.

Não é tão imbecil assim, acho eu. Se fosse não reconheceria que é imbecil e estaria escrevendo opiniões idiotas na internet e se achando o máximo. Um homem que diz “eu sou um imbecil” não o é inteiramente: ele precisa ter refletido muito sobre seus atos para chegar a essa conclusão. No caso, pode ter percebido em seu gesto aquele que provocara um desequilíbrio universal, uma ruptura incontornável, o desencadeamento de forças colossais.

O primeiro plano do filme é quase uma demonstração do que se passou. De cara, convém esclarecer, não tem nada, objetivamente, com a história narrada.

Estamos em outra paisagem, aliás nada italiana. Infernalmente invernal. O primeiro a sobressair é o rosto do cavalo, só depois atentamos ao homem na carroça e, finalmente, à paisagem branca, gelada, árida.

Ao fim, o que de início parecia a cena óbvia, banal, de um cavalo puxando carroça, já mostra outras possibilidades: a começar pela visível exaustão, pela fragilidade do cavalo. Meu primeiro impulso é antropomórfico: é de reduzi-lo ao homem, ao trabalho humano. Imbecil, naturalmente.

O filme logo mostra sua irredutibilidade. No dia seguinte o cavalo se recusa a sair. Não come. Está como que tomado por uma melancolia, por um torpor inexplicável. O homem e sua filha (mais ela) tira os arreios do cavalo, que parecem pesar uma tonelada em seu lombo, e o recolhem à cocheira.

O que temos a seguir é o pai e a filha. O estranho pai. O braço direito imobilizado. A filha o veste e tudo mais. Refeição: uma batata quente. Café da manhã: um gole de aguardente. Aridez completa, bem cinema da Europa Oriental. Longos planos, a sensação enganosa de que nada acontece. Gestos repetitivos, opção pelo mínimo. Sensação de que cada gesto não faz senão retomar uma rotina. Nenhuma profundidade neles, nenhuma intenção: sobrevivem como os cavalos puxam carroças.

Tudo, penso, vem junto: homens, cavalos, natureza – tudo se liga. Os dias correm. A cada dia algo parece se perder: um dia depois de expulsar os ciganos do seu poço, a água seca de uma hora para outra. Tentam partir do lugar, puxando suas coisas, mas não há outro lugar: voltam à casa.

Passam os dias. Cinco. No sexto desaparece a luz.

Ah, a luz: não é necessário falar da beleza dos planos – estamos nessa escola húngara de planos longos admiráveis, com uma organização sempre capaz de nos surpreender, de apresentar uma nova disposição dos personagens no espaço e, a rigor, um novo espaço. Um novo mesmo espaço seria possível dizer.

Mas isso não faria sentido sem duas coisas: a câmera, tal como Bela Tarr a conduz, com movimentos sempre muito suaves e encantadores, sobretudo os travellings de recuo. Mas a luz é impressionante: a cada novo deslocamento da câmera, os personagens surgem sob uma nova luz. Uma luz exata, precisa. Não feita para brilhar, para impressionar, nada disso. Apenas exata.

Essa luz, penso, é a do “Fausto” de Murnau: que se recusa a ser elétrica, a mostrar-se elétrica. E a trama não tem lá suas afinidades? Afinal, o Fausto vende a alma para salvar a humanidade da peste que se abate sobre ela. Em Bela Tarr, na verdade, não existe alma a vender. Não há mágica, nem demônio.

Há, talvez, um Deus fatigado. Até o sexto dia ele parece desfazer sua obra. No sétimo descansará.

No entanto, me pergunto: seria essa uma das obras-primas que ninguém se conforma em reler, como dizia Borges? Pode ser: há algo de exaustivo no filme. Mas, que importa: as imagens ficam gravadas na mente do espectador com uma força colossal e a experiência compensa inteiramente eventuais inconvenientes. Com o Aurora do Murnau também acontece isso… Acontecimentos como esse não são para todos os dias.

Duas observações para terminar:

1. Não adianta comprar o filme no pirata – tem que dar um jeito de ver em sala.
2. Se Iñarritu quer mesmo fazer filmes com planos intermináveis podia bem fazer um estágio na Hungria: os caras sabem o que fazem (e por que fazem) por lá.