Fui ver “Chatô” como uma espécie de formalidade: um filme que demorou 20 anos para ser concluído devia ser uma formalidade, uma coisa a entregar para a Ancine ver e tal.
Saí de lá com impressão bem diversa: “Chatô” entra num personagem cheio de contradições, meio visionário, meio bárbaro, meio chantagista, meio benfeitor das artes. E meio mais um monte de coisas, que passam todas pelo fato de ser um magnata da mídia, isso por inteiro.
O filme é muito ambicioso, o que é bom, porque está à altura dessa ambição.
Agora, parece que Guilherme Fontes, depois de comer o pão que o diabo amassou, está meio que com a badalação recente subindo à cabeça.
Explica-se, mas pode ser perigoso.
Ele se ressente muito, reclama muito da burocracia, do MinC em diversas administrações (de FHC até agora). Deve ter razão, alguma pelo menos, mas o fato é que a burocracia tem que prestar contas a um monte de gente de um dinheiro que é, afinal de contas, público.
Claro que ficar com uma obra pelo meio é a coisa mais cara que existe. Mas vá convencer o Ministério Público, e mais a CPI, e não sei mais quem…
E isso no tempo em que todo mundo caía de pau com essa história de renúncia fiscal para coisa como cinema…
Quanto a ciúmes… Não sei se foi o Barreto ou não, se houve intriga ou não. Mas quem não ficaria com ciúme de tudo que ele levantou naquela época. Eram, se estou bem lembrado, algo como R$ 8 milhões. Mas isso entre 1995 e 1999… Bota a inflação aí e vamos ver quanto dá.
E quantos filmes seria possível fazer com isso, etc. e tal.
Enfim, uma série de coisas que hoje não vêm mais ao caso.
1001
Não me lembro se já escrevi sobre As Mil e Uma Noites. Mas o que recomendo mesmo é o belo comentário de Carlos Alberto Mattos que roubo das Colunas e Notas de Marcelo Pestana e Carlos Cirne.
“O primeiro volume de As Mil e Uma Noites portuguesas já está em cartaz. (…) Os dois outros, ao que me consta, entram semana que vem. Miguel Gomes esteve no Rio semana passada para apresentar o(s) filme(s) na itinerância da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Ele explicou que são três filmes, mas é um filme só. Coisa que eu não sabia que existia, pois nunca tinha feito”, esclareceu.
Miguel tem feito coisas do arco da velha. Entre curtas e longas, firmou-se como o mais festejado cineasta português da atualidade. Entre os longas, A Cara que Mereces flertava com os contos de fada, anunciando já a irreverência do diretor no trato com um certo jeito lusitano de ser. Aquele Querido Mês de Agosto encantou a muitos com sua mescla de documentário reflexivo e ficção. Tabu foi objeto de admiração praticamente unânime em sua sátira aos filmes etnográficos e ao cinema colonialista. As Mil e Uma Noites parte da realidade portuguesa dos anos 2013-2014 (crise econômica, desemprego, empobrecimento, desmonte social) para levantar voos amargos no tapete da fantasia.
Para mim, o primeiro volume – O Inquieto – é o melhor de todos, e cumpre vê-lo para melhor apreciar os demais. O próprio Miguel inicia os trabalhos no papel de um cineasta interessado em conciliar o documentário social com um projeto de filme bonito. Enquanto documenta o fechamento dos estaleiros de Viana do Castelo e a luta dos apicultores da região contra uma praga de vespas – já o choque dos dois assuntos provoca estranhamento, ele estabelece uma distância crítica entre imagens e sons. Coloca-nos num território estranho, entre a realidade e a farsa, a adesão documental e o distanciamento ficcional.
Mas eis que no meio do trabalho, o diretor foge literalmente da cena, deixando a equipe desnorteada, para reaparecer mais adiante enterrado até o pescoço por desobedecer às regras da produção cinematográfica. Parece um cineasta brasileiro sufocado pela burocracia da Ancine. É então que ele inventa uma Xerazade para socorrê-lo e evitar sua decapitação.
Daí em diante, a miséria portuguesa passa a inspirar um punhado de histórias absurdas, no limite do surrealismo. Um grupo de ministros e empresários precisam recuperar a ereção para tocar o país para a frente, auxiliados por um hilário tradutor brasileiro. Cabe, aliás, verificar as menções folclóricas ou musicais que Miguel faz ao Brasil em cada um dos volumes. Há também a história de um galo que é levado a julgamento por tentar acordar os homens de uma aldeia com cantos fora de hora. (…)
As características mais marcantes da obra de Miguel Gomes estão fartamente presentes em As Mil e Uma Noites, quais sejam os textos de alta qualidade literária e forte teor satírico, as imagens extravagantes e a narrativa rigorosamente imprevisível. Pulsa ali uma visão profunda da singeleza e da dor portuguesas. Realidade e artifício não se rejeitam, antes caminham juntos, como resultado de uma criatividade exuberante.”
E isso prossegue em www.carmattos.com
Que é para onde vale a pena se deslocar com frequência, aliás.
DVDs
A agonia do DVD é curiosa: levou ao fechamento de pilhas de locadoras, mas tem dado uma maneira formidável de trazer coisas boas.
Penso, em particular, nas caixas que a Versátil está produzindo. Custam R$ 60,00. Vêm com seis filmes em três discos. Quem pegar a caixa Faroeste 2 ou Sci-Fi, por exemplo, verá que tem preciosidades preciosas.
No Faroeste começa com o Wagon Master de John Ford, que não é o máximo, mas tem ao menos uma cena antológica: quando a caravana topa com a carroça do mágico e mulheres e assistentes, que já não têm água, então se entopem de uísque.
Colorado Territory, de Walsh, é uma obra-prima: refilmagem no Oeste velho de High Sierra. Com esse sentido raro da tragédia que tinha Raoul Walsh.
E, ainda, The Broken Arrow, com Samuel Fuller jogando todas as contradições do mundo na cara da América e do mundo. Poderoso, mais do que achei quando o vi, há milênios.
Para terminar, Wichita e mais um de Jacques Tourneur de que me esqueci. Ainda não revi Wichita, mas garanto. O outro fica para depois.
A caixa de ficção científica começa, só para começo de conversa, com “Scanners”, do Cronenberg, e “O Homem dos
Olhos de Raio-X”, do Corman. Depois vem “A Coisa do Outro Mundo”, Nyby & Hawks.
O melhor não são os filmes. É com as caixas (e a relativa decadência da Continental), agora existem ótimos extras, ótimos mesmo. Da maquiagem em “Scanners” a John Carpenter falando da “Coisa” e chamando o John Ford de sargento, dando uma bela esculhambada nele.
Aqui há uns filmes mais fracos, mas…
E não pára aí. Há uma caixa com três filmes do Melville e um doc sobre ele.
Os caras pensam que eu não tenho mais nada pra fazer…