As mulheres, a “polêmica” e as troglodettes

Por Inácio Araujo

Polêmica é uma palavra que merece ser grafada entre aspas nesses tempos em que qualquer coisa é “polêmica”.

Polêmico foi o embate entre Pascal e os jesuítas, ou foi Monteiro Lobato contra os modernistas, ou ainda foi o Borges das “Inquisiciones”, ou o Truffaut que enfrentou uma certa tendência do cinema francês.

No passado, essa palavra carregou algo de épico. De combate, de enfrentamento, não raro, entre um lado mais fraco que desafia o outro, poderoso, e o vence ao menos na força da palavra. Ou mesmo vence literalmente, como Émile Zola, que quase sozinho começou a combater o exército francês e o antissemitismo idem, num caso que terminou com a absolvição do capitão Dreyfuss.

Hoje ela é mais modesta. Quando se propõe para redação um tema como a violência contra as mulheres, abre-se de imediato uma “polêmica”. De um lado Jair Bolsonaro e suas troglodettes. De outro, a civilização.

Seria isso, em princípio. Mas não. Lembrar que as mulheres são violentadas, agredidas, chutadas e eventualmente mortas é algo “politicamente correto”, aparentemente. Portanto, suspeito de ser de esquerda. Portanto, se se trata de um exame feito pelo governo federal, suspeito de “difundir ideologia” etc. etc.

Impossível reproduzir a cadeia de não raciocínio que se produz aí.

Mas a violência contra a mulher não é uma tema da esquerda. Diz respeito a direitos individuais, que por sinal a esquerda costuma negligenciar.

Postular que a mulher tenha o direito de andar sem ser incomodada, agredida ou chutada me parece dificilmente assimilável ao que se chama de “esquerda”. Ou significa que a direita vai muito mal. Embora não seja de estranhar que as troglodettes defendam até o direito igualitário de torturar homens e mulheres, pois não?

Segundo, convém lembrar, “politicamente correto” está longe de ser uma invenção de esquerda. É no máximo uma gambiarra linguística americana que visa por panos quentes em conflitos reais que ocorrem nos EUA. Experimente chamar um negro de crioulo nos EUA e as coisas pegam fogo.

Não é fácil julgar outro país, outro povo, mas se os EUA se acomodam chamando os negros de afroamericanos e todo mundo se sente feliz assim, qual o problema?

Mas, se algumas formulações são “de esquerda”, qual o problema?

Um dos pontos de honra das troglodettes é criminalizar “a esquerda”. Como se houvesse um lado certo: a polícia, a tortura, a discriminação, a violência contra a mulher, o assassinato de homossexuais de um lado, como fatos “naturais”, isto é, que fazem parte da natureza, e os outros, isto é: quem defende o direito dos negros, dos homossexuais, dos transexuais à igualdade, a não serem batidos etc.

Isso seria “a esquerda”. Ou ainda “a ideologia” que pretendem propagar.

Logo vejo um leitor da Folha a bradar contra colocar em questão os defensivos agrícolas, que segundo ele muito fizeram pela grandeza nacional.

Ok, me parece que essas coisas por vezes viram superstições. Mas, que diabo, não se pode nem ao menos colocar uma dúvida sobre o que pode causar à saúde o uso de inseticidas no cultivo de alimentos?

Seria uma questão tabu? De “esquerda”? Mas então os ambientalistas, por defenderem o meio ambiente, são “de esquerda”? Defender a preservação do ar é “de esquerda”? Mas então o governo do PT seria uma bela de uma “direita”? Ou só se é “de esquerda” quando isso convém às troglodettes?

Desculpem eu estar falando dessas coisas em plena Mostra, no meio de tantos filmes. Mas é que esse é o nível do debate que temos hoje.

É “a polêmica” em marcha!

Você fica do seu lado, eu fico do meu. Basta dar uma olhada nos debates políticos na Globonews e na TV Cultura (oposição conversa com oposição) ou da TV Brasil (situação com situação).

Trocar ideias parece uma coisa impossível, como se só fosse possível perceber o mundo como eu percebo…

E no meio disso é que aparecem as troglodettes, defensores da liberdade plena, que só acham proibido, e portanto digno de ser agredido, quem não esteja perfeitamente alinhado com eles.

Legal como ideia de liberdade… Bem amplo: você aí que defende, digamos, o Bolsa Família, como é de esquerda, eu posso te bater à vontade.

E se se pedir que isso não aconteça é “ideologia”. Ou “politicamente correto”. Ou qualquer coisa assim, tanto faz. Porque às troglodettes tanto faz: qualquer coisa que insinue a proximidade de um raciocínio já é uma ameaça.

Nesse sentido, nosso troféu de último reduto do macarthismo pode ser bem conveniente.