Doutores sem alegria

Por Inácio Araujo

Os médicos criaram os trotes mais criminosos em suas universidades.

Os médicos brasileiros, eu digo.

Lembro de um tempo em que, debaixo da minha janela, passavam os calouros da Santa Casa entoando um canto mais ou menos assim:

sou calouro/ sou nojento / asqueroso / fedorento

Essa era a parte delicada do trote, entenda-se…

Quando abriu o Mais Médicos, lembro de um rapaz, muito simpático aliás, que se inscreveu e, na hora H, apareceu no jornal retirando sua inscrição.

Bem, esse cara trabalha em um dos mais sofisticados, acho que o mais sofisticado programa de sua especialidade em São Paulo, no Hospital Oswaldo Cruz.

Alguém acha seriamente que ele pretendia ir para algum fundão atender pobre?

Não há necessidade disso, mas uma manifestação tão ostensiva de mau caráter é coisa indigna de um profissional qualquer, repulsiva (inútil dizer: não consegui voltar a me consultar com ele).

Agora médicas, alguém posta no facebook, tiveram a brilhante ideia de usar blackface para manifestar sua oposição ao sistema de cotas para estudantes negros.

É mais um sintoma da humanidade profunda de parte considerabilíssima dos praticantes dessa profissão no Brasil.

Por que não pode haver cotas? Ah, são os meritocratas em ação: quem tem maiores possibilidades, quem estuda em colégio caro, quem vem de família culta tem mais méritos do que pobres, pretos, alunos de escola pública.

Entendi a divisão dos méritos.

Ué, mas não era essa gente mesmo que, há pouco tempo, bradava que os médicos cubanos que vinham ao Brasil eram escravos?

Está ok atentar para a escravidão em outros países. Acho justo.

(Aliás, acho justo até se oporem a políticas oficiais, desde que o façam com decência).

Mas: que tal olhar para a escravidão debaixo dos seus próprios narizes?

Não é tão rara assim.

Que tal boicotar essas lojas que vendem roupas a preços acessíveis porque feitas com mãos de obra escrava ou similar à escravidão?

Entre esses escravos encontram-se, por sinal, as muitas pessoas que muitos desses médicos nacionais costumam deixar a ver navios quando aparecem nos postos de saúde para assinar o ponto e dar no pé.

Ou quando, trabalhando para convênios, despacham suas vítimas em cinco minutos.

Tudo isso me parece, mais do que triste, um retrato horroroso do tipo de humanidade que o Brasil construiu.

Os médicos brasileiros decentes (que existem) deviam se manifestar a respeito.

Máfia Branca

A propósito, recomendo vivamente “Bisturi – A Máfia Branca” (Luigi Zampa, 1973).

Zampa merece ser revisto.

Lembro que Carlão escreveu uma bela crítica ao filme na revista “Cinegrafia” (1974 – número único).