Não vou voltar ao que “A Tristeza e a Piedade”, que o Instituto Moreira Salles está lançando em belo DVD já foi, a seu tempos (anos 1970), nem a sua importância como documentário.
Tudo isso pode ser verdade. Mas o coração do filme consiste em ter revelado uma França dividida, em grande parte comprometida com a Ocupação, cúmplice da Ocupação, do governo de Vichy – o que também implica ser o filme que quebrou a narrativa gaullista da França “eterna” e resistente.
A 2ª Guerra, para a França foi uma vergonha, para dizer o mínimo. Mas essa vergonha está ligada ao fato de o país ser partido em dois: esquerda de um lado e direita de outro. E a direita, naquele momento, preferia ver Hitler pela frente do que os socialistas do Front Populaire. Eles se odiavam, eis o fato.
Essa a raiz do governo Pétain, de Vichy, da estratégia entreguista do exército francês. Do fascismo triunfal daqueles anos, em suma. Com sua Milícia caçando judeus e resistentes. Com a Legião dos Voluntários Franceses, que mandava os jovens fascistas para lutar pela Alemanha (o depoimento de um deles é ponto altíssimo do filme)…
Mas não é tanto isso que me comove quanto a proximidade com certos aspectos do presente. Se na França assiste-se a um renascimento da extrema-direita, com direito a racismo e tudo mais, é porque, com efeito, o gaullismo nunca foi unânime (digo: a narrativa gaullista), porque a derrota final não representou, de fato, o fim daquele modo de pensar e sentir.
Ou seja, algo muito próximo do que acontece aqui entre nós. Tivemos uma longa ditadura. Não foi uma ocupação, é certo, mas deixou marcas muito profundas. O gosto pelo autoritarismo, o desejo de ver silenciadas as tragédias do cotidiano, a crença mesmo de que sob um Estado forte essas tragédias não acontecem (não é que não aconteçam: simplesmente não ficamos sabendo que acontecem).
Esse desejo de lei e ordem reprimido durante tanto tempo por uma parte grande, muito maior do que possamos imaginar, da população, retorna nos últimos tempos com força.
Confunde-se com certa fúria antigovernista que é, em boa medida, fúria contra a presença do Estado nos negócios de Estado (o que é a questão do Uber, agora, senão esse desejo de desregulamentação total?).
Adota-se a ideia de que a repressão cura todos os males: das drogas à diversidade sexual, dos crimes de morte à corrupção.
Quero dizer com isso que o pensamento da ditadura, no que tem de ingênuo e no que tem de nada ingênuo.
E o que tem de nada ingênuo: por exemplo, quando afirma que se escandaliza com a corrupção, mas, muito mais que isso, o que o escandaliza mesmo é que o governo gaste o “seu” dinheiro (por algum motivo ele acha que o dinheiro dos impostos é do contribuinte, quando, justamente, não é) com os pobres.
Esse eco, essa coisa que ficou na garganta de tanta gente desde e redemocratização, já faz uns 30 anos, mostra como foi profundo o efeito da ditadura (civil-militar, na verdade) de 1964.
Profundo e persistente.
Caramba: “A Tristeza e a Piedade” vai bem mais longe do que eu podia pensar que fosse.