O artista deixa a pele em seu trabalho.
E Carlos Nader não faz menos que isso em “Homem Comum”, um filme que levou quase 20 anos filmando e onde acompanha a trajetória do caminhoneiro Nilson.
Nilson é, em grande medida, o alterego, eu diria mais, o espelho do próprio diretor.
E o que os dois procuram? Às vezes pode parecer um diálogo de surdos. O diretor procura encontrar um sentido para uma vida que lhe parece sem sentido. Nilson procura, antes, tocar a vida: é um homem do real.
No entanto, a vida se abaterá sobre ele. O que era no começo uma amizade, uma proximidade, torna-se algo mais, uma espécie de identidade.
Nader encontra nele seu personagem. Aquele que corresponde a suas preocupações, que faz contraponto ao “A Palavra”, de Dreyer (longamente evocado na versão mais recente).
As questões que ali entram em circulação estão longe da nossa tradição: a dor, a morte, Deus, a amizade, a fé – em suma, o mistério da existência.
O próprio Nader admite que amadureceu ao longo da filmagem e preocupações um tanto pueris amadurecem ao longo do filme.
Nader aparece hoje como um herdeiro do Coutinho, tenho a impressão. Não um imitador, longe disso. Mas alguém que dá sequência a um trabalho, que se vale dos acasos, que interroga o tempo todo (mas não é um entrevistador como Coutinho era, o método é outro).
Duas coisas só para completar:
1. Eu gostaria de rever a versão inicial do filme, onde, em vez de usar fartamente “A Palavra”, Nader usou uma filmagem que fez, uma paródia (ele disse isso, mas a palavra pode ter um peso pejorativo que, acho, esses trechos não merecem) do filme de Dreyer. Qual a diferença? Bem, é que “A Palavra” é um filme tão colossal, tão magistral, um milagre mesmo, que, acho, tende a empanar um pouco o próprio documentário, além de esclarecer com talvez até demais clareza as fontes de trabalho de Nader (digo: isso é uma dúvida, não uma certeza).
2. Estranho notar que, num filme em que os homens são evocados com tanta veemência, a melhor sequência seja a dos porcos, com seus olhares estranhamente “humanos”, quer dizer, em que parece existir a compreensão, conformada, de que estão indo para o matadouro (como se o filme dissesse: mas não estamos todos indo? então, por que porcos parecem ter mais clareza sobre seu destino, seu nada, do que nós outros?).
Cinema de Montagem
A mostra Cinema de Montagem, que está começando no Cine Caixa Belas Artes (SP) é uma bela oportunidade para entender melhor esse aspecto central da linguagem cinematográfica.
Os filmes são desiguais, como sempre numa mostra assim, mas há preciosidades lá dentro.
Mais importante, até, talvez seja o complemento: vários debates com montadores e afins, que tendem a ser aulas sobre o assunto.
Mas sem ver os filmes, claro, o complemento não faz sentido.
Mostra obrigatória, me parece, para cinéfilos e alunos de cinema.