Acho que a morte de Manoel de Oliveira pegou todo mundo de surpresa. Me lembro que quando morreu Frank Sinatra a Ilustrada já tinha uma edição prontinha há tanto tempo que foi preciso refazer toda.
Já o Manoel… Acho que já não acreditávamos que ele fosse mesmo nos deixar algum dia. Pena, não era verdade.
O que pude dizer, às pressas, é o que vai abaixo:
(artigo para a Ilustrada – na urgência, é o que posso mandar agora: espero completar amanhã)
Foi em 1978: o cinema Action République, em Paris, estava lotado para a exibição extraordinária de um filme português. Quem patrocinava a sessão era Serge Daney, o maior crítico francês em atividade naquele momento. Exibia-se um filme português. O diretor era um senhor já de idade que estava em pé, ao fundo da sala, ao lado de Daney.
Houve certa inquietação na plateia, quando se soube que o filme teria quatro horas de duração. Filme português, vá lá. Mas quatro horas?
Pois bem, as quatro horas de “Amor de Perdição” correram sem que se ouvisse nem mesmo a respiração do público, tal a atenção voltada à adaptação do romance de Camilo Castelo Branco. Ao final, houve uma espécie de consagração do velho cineasta. Manoel de Oliveira teria, então, quase 70 anos.
Seria este seu último filme? Eis uma pergunta que, há anos, críticos e cinéfilos faziam. O fato é que muitos desses morreram, mas Oliveira prosseguia. Seria absurdo dizer que sua obra começa com “Amor de Perdição” e ignorar o que veio antes, desde “Douro, Faina Fluvial” (1931)ou “Aniki Bobó” (1942), sua magnífica estreia na ficção.
Mas é depois de 1978 que sua carreira deslancha, com “Amor de Perdição”, originalmente uma série para TV que a própria RTP se recusava a exibir: o fim do salazarismo e sua associação com o produtor Paolo Branco lhe permitiram realizar uma série de filmes e garantiram a presença nos principais festivais da Europa.
No Brasil, tornou-se conhecido graças ao lançamento de vários de seus filmes na Mostra Internacional de São Paulo. Aqui também filmou um pequeno porém notável segmento para o filme coletivo “Mundo Invisível”, produzido por Leon Cakoff.
Ao longo dos últimos 35 anos, Oliveira esquadrinhou, em dezenas de trabalhos, a literatura de seu país, a Europa e seu destino, a glória e o declínio de Portugal. Com desenvoltura e inteligência agudas, utilizou os tempos longos, pacientes, como instrumento de reflexão e aprofundamento temáticos.
Se nunca abandonou os atores que o acompanharam por longos anos (Luís Miguel Cintra, Leonor Silveira, entre outros), mas a partir de certo momento soube incorporar a seus filmes estrelas internacionais como Marcelo Mastroianni, Catherine Deneuve, Michel Piccoli ou o nosso Lima Duarte, que fez o padre Vieira idoso em “Palavra e Utopia”.
Oliveira morre aos 106 anos. Um pouco mais jovem apenas do que o cinema, deixa uma das grandes obras do modernismo cinematográfico. Seu “filme testamento”, que tantos acreditavam ter chegado, desde os anos 1990, nunca se fez. Ou antes, está em toda parte nessa obra sempre surpreendente e magistral.