“As Pontes de Sarajevo” é um filme de sketches que passou na Mostra. Como todo filme desse tipo, existe ali algo de aflitivo: são 13 segmentos, 13 visões desse lugar complexo que é Sarajevo, no passado e no presente.
De um curta a outro você é jogado a cada cinco minutos para imagens e imaginações muito diferentes. Claro, há Godard, que sempre se diferencia.
Mas o que me intrigou mesmo foi um sketch em que um casal conversa, acho que numa noite de Natal. Não os vemos. Apenas percebemos o quarto, ao fundo, onde a mulher fala do livro que está lendo, em que o autor parece antecipar todos os males que afligem a Europa. O que parece a ela mais espantoso é que o livro foi escrito antes de 1914, portanto tem um caráter antecipatório notável.
O marido a corrige. O livro foi escrito depois da Primeira Guerra, portanto o autor não previu nada. Apenas analisa o que aconteceu. Ela se pergunta quem seria o culpado por tudo que se passou. O marido diz que, basicamente, os húngaros. São sempre os húngaros. E depois se corrige: os húngaros e os americanos.
Depois amplia e se explica: os americanos porque na verdade são os judeus americanos que interferem no mundo.
Conversa vai, conversa vem, ele termina por simplificar as culpas: são os judeus os culpados de tudo e pronto! Vamos apagar a luz e dormir.
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Não sei se o segmento é alemão. Se localiza os fatos em 1930 ou 2010. Eis o que é inquietante: os judeus servem basicamente para você jogar neles a culpa por qualquer coisa que aconteça.
É o horror! Isto.
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O problema é que agora, em São Paulo, numa conversa rápida, enquanto eu narrava o furto acontecido no meu escritório, uma senhora interrompe e diz, se indaga, com toda certeza do mundo, como é que, face a coisas desse tipo, alguém ainda possa votar no PT.
Foi aí que me lembrei do filme.
Eu acho que a culpa podia ser da administradora do prédio, que deixou a porta de entrada detonada num fim de semana prolongado, ou que só mantém porteiro durante o dia, deixando os moradores desprotegidos. Achei que a culpa podia ser do chaveiro, que devia ter vindo consertar a porta e não veio. Ou do feriado prolongado, quando as pessoas viajam e deixam o prédio quase vazio.
Enfim, podia distribuir culpa por muitos lados, até à polícia local, etc.
Admito que só não me cogitei de culpar o PT. Mas, para aquela senhora, a culpa era do PT.
E é isso que me parece alarmante: agora aqui em SP há uma população média para quem a hipótese mais viável, para todo e qualquer mal que nos ocorra, é de que a culpa seja do PT.
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O PT virou a Geni do momento.
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Isso pode ser um pouco de frustração eleitoral recente, claro.
Isso é um fenômeno paulista, com certeza.
Mas isso não deixa de ser assustador: estamos diante de uma espécie de lavagem cerebral de natureza hitlerista, onde a culpa pelo que acontece (de mal, claro), mais um certo ódio, pode ser atribuído a uma classe de pessoas.
Isso é insuflado por parte da imprensa, por blogs irresponsáveis, por personagens lamentáveis da TV.
Do ponto de vista da racionalidade é lamentável, pois leva as pessoas a acreditar em explicações simples (e no mais falsas).
Do ponto de vista político é perigoso, porque golpista.
Assim como no diálogo do filme, existe inocência na imbecilidade da explicação dada pelo homem para os fatos da Europa: como se a atribuição de culpa aos judeus fosse apenas uma conversa de fim de noite. Sabemos que não foi assim.
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São Paulo está cultivando algo sinistro: não mais a visão de um partido político como adversário, mas como algo a ser extirpado, junto com seus eleitores, da vida política nacional.
Ninguém se espante se um certo Telhada espalha a tese do separatismo paulista: está de acordo com muito que leio e ouço e que seria supostamente mais sofisticado.
Eu sei que certos personagens achariam legal obrigar os militantes do PT a botar uma estrela em suas vestes e migrar para o Nordeste. Há no ar um desejo de limpeza étnico-política que essa maravilha contemporânea dita redes sociais e interatividade não para de insuflar.
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Seria desejável que as mentes mais alertas da oposição pusessem panos quentes nessa história.
Ela não é apenas perigosa. É, pior, nociva, pois elimina velhos hábitos, como olhar e pensar.