Cine Danúbio

Por Inácio Araujo
Cena de Amor, Palavra Prostituta, 1980/82, Carlos Reichenbach
Cena de Amor, Palavra Prostituta, 1980/82, Carlos Reichenbach

João Carlos Rodrigues sempre foi um crítico destoante.

No tempo da Embrafilme de vento em popa, com o pessoal do cinema novo fazendo a caveira dos filmes populares, ele aparecia para defendê-los, para lembrar que eram muito melhores que os filmes “de prestígio”.

O que na época soava polêmico, relido hoje em “Cine Danúbio” (Ed. Giostri) parece uma profecia: enquanto muitos filmes feitos na Boca e adjacências vivem, boa parte da produção Embrafilme dos anos 70/80 naufraga no esquecimento. No justo esquecimento, diga-se.

Não penso nem na defesa exaltada, magnífica, que faz de certos filmes de Carlos Reichenbach. Se na época não era reconhecido (ou quase metodicamente ignorado), Reichenbach conseguiu romper a barreira de indiferença que lhe era imposta pela crítica cooptada (ou tola, ou incapaz de reconhecer um bom filme fora do “tema nobre”).

Mas penso em outros. Na percepção do talento de artesãos menores, como Jean Garrett. Na defesa de um cinema que tinha origem popular, que olhava o mundo com certa inocência, mas sabia se fazer visto e compreendido pelos espectadores. Na análise da crítica aguda de Jairo Ferreira.

Esse olhar pontual se desloca a visões mais amplas do que seja o cinema brasileiro ou mesmo o Brasil na primeira parte de “Cine Danúbio”.

Vou pinçar um momento:

“Seria natural que filmes de extrema direita, como os produzidos por Jece Valadão nos anos 70, tivessem proliferado nos períodos mais repressivos de nossa história. Sua ausência é um mistério, até porque as urnas têm demonstrado o povo brasileiro bem chegado aos apelos direitistas. Talvez seja uma prova de como o cinema nacional não exprime o perfil de nossa sociedade, mas o desejo de transformá-la”.

Isso deve ter sido escrito antes de “Tropa de Elite”. Mas não importa. Não importa também que eu ache a produção de Jece Valadão bem ambígua em relação à questão política: ela vai de Plínio Marcos à defesa de policiais mais que duvidosos…

O que importa é que, numa penada, João Carlos define o cinema de Valadão, certa tendência de boa parte dos brasileiros (direita, volver), a distância entre esse tipo de pensamento e a maior parte dos filmes brasileiros e, por fim, esse divórcio caracterizado pela tradição, vinda do cinema novo, ou dos anos 1960, do cinema como instrumento de transformação social.

Numa admirável penada…

Quem ler esse livro certamente descobrirá outros parágrafos tão ricos quanto este. Eles estão lá.

Quem não conhece seus textos, terá a oportunidade de descobrir um pensador fértil do cinema no Brasil.

E quem conhece, como eu, o redescobrirá a partir de outra perspectiva.

Em suma, as águas do “Cine Danúbio” prometem turbulências nos valores acomodados do cinema brasileiros, convidam a revisões e a reflexões. É grande crítica.