O Último Resnais e a Alienação

Por Inácio Araujo

Com seu apelo ao teatro e a todos os artifícios supostos pelo teatro, Alain Resnais nos leva em “Amar, Beber, Cantar” a uma experiência estranha (seus filmes são sempre, antes de tudo, a proposição de uma experiência, de uma vivência inédita).

De certa forma, escrevi na Folha a respeito disso (e transcrevo abaixo).

Mas existe algo que esqueci de dizer:

O filme, incluindo a peça teatral que ali se representa, existe para pôr em derisão o universo burguês.

São velhos dramas: a morte iminente do amigo, a agitação das mulheres em torno de um homem que não é seu marido…

Dramas que o filme (e talvez a própria peça de que se inspira, não sei) se empenha em mostrar a comédia que contêm (o filme é para rir).

Por trás disso, acredito, existe uma crítica do mundo de alienação em que vivemos: amar, beber, cantar. Tudo isso é muito bom, mas uma das coisas que nos intriga no filme é um subtexto inquietante: existe uma realidade social, esta sim dramática, para a qual os personagens não têm olhos nem por um segundo.

Como desde sempre, em ”Amar, Beber, Cantar” Alain Resnais nos conduz por um labirinto. Já houve ocasião em que era fácil perder-se nele (“O Ano Passado em Marienbad” é o caso extremo). Houve ocasiões em que a suavidade era tal que nem mesmo nos podíamos dar conta do tanto que o enredo nos enredava.

Em seu último filme, “Amar, Beber, Cantar”, o diretor francês (1922-2014) retoma sua colaboração com o dramaturgo Alan Ayckbourn, o mesmo de “Smoking/No Smoking”. Estamos no interior da Inglaterra. Ali, dois casais de amigos preparam-se para a encenação amadora de uma peça teatral: Kathryn e Colin (Sabine Azéma e Hyppolite Girardeau) e Tamara e Jack (Caroline Sihol e Michel Viullermoz).

Colin, médico de profissão, recebe a notícia de que Georges, seu amigo e cliente, está com câncer e tem no máximo mais seis meses de vida. Com a insistência de Kathryn, acaba rompendo o sigilo médico e revelando a identidade do paciente _em troca da promessa de absoluto sigilo. Kathryn, claro, logo passa a notícia ao casal amigo, com o argumento de que Jack era o melhor amigo de Georges.

Seguem-se, no roteiro, as seguintes informações: Georges sofre de solidão, pois foi abandonado por Monica, que por sua vez vive agora com o agricultor Simeon. É o início de um formidável teatro conjugal.

Nada disso teria maior relevância, no entanto, sem o tratamento particular que Resnais lhe atribui. Rejeitando o realismo (como quase sempre), é ao teatro que o cineasta recorre para montar seu jogo. Primeiro, observamos os cenários. Até o quarto final do filme, os personagens permanecem sempre em exteriores: a casa de Colin, a casa de Jack, a de Georges, a de Monica _mas os jardins, sempre: magníficos, óbvios cenários.

Os atores amadores vivem, assim, em cenários. Suas casas surgem em princípio em desenhos coloridos, dos quais a câmera se aproxima antes de mostrar os personagens nos jardins. Resnais vai assim superpondo camadas, afastando a realidade para nos jogar no labirinto.

Nele acontece a agonia de Georges, é certo. Mas, sobretudo, as repercussões que a sua próxima morte desencadeia nas três mulheres: Kathryn, Tamara e Monica. As duas primeiras são as maiores responsáveis pelo humor do filme, na medida em que a doença de Georges é o estopim que revela seus possíveis defeitos.

Mas o teatro não se detém aí: por um lado, as atitudes de Kathryn e Tamara revelam quão pouco os casais podem se conhecer. Por outro, o quanto amigos também podem se desconhecer. Um novo Georges revela-se também para Jack e Colin. Ah, e não se pode esquecer: além de Georges há outro personagem em permanente extracampo no filme: a jovem Tilly, filha de Jack e Tamara. Também ela não estará lá só para constar: será decisiva na evolução segura da trama.

E assim Resnais trabalha cada elemento (a vida, o teatro, as cores, os cenários, os desenhos, o falso) para nos enredar no delicado porém inesgotável humor dessa obra, magnífico fim de vida e carreira para um magnífico artista.